A polêmica sobre o efeito das reformas nos salários ainda não está encerrada. Aqui tentarei demonstrar que poderá haver perdas reais se a inflação não for zero, mas tendo de admitir que a nova política acarretará perdas menores do que na situação anterior. Será demonstrado também que, seja pela argumentação de que não importa quando o trabalhador recebe, mas sim quando ele gasta, ou seja, pelos efeitos que regimes de periodicidade e prazos de pagamentos diferenciados acarretam no cálculo das médias salariais - mesmo aceitando-se o raciocínio oficial de que primeiro se recebe, para depois se gastar - o abono salarial acabou convertido num colchão amortecedor. Ele tem por finalidade evitar que alguns segmentos da classe assalariada tenham perdas com a implantação das reformas, mesmo com inflação zero. Pérsio Arida, ao resumir os principais pontos do debate, reafirmou que os salários reais serão aumentados, e sobre seus comentários embasarei este artigo.
Na questão do que fazer com a inflação da segunda quinzena de fevereiro não incorporada no IPCA daquele mês - Arida apresenta o argumento, que certamente não deve ter escapado a outros economistas, de que "o índice que termina quinze dias antes começa quinze dias mais cedo". Ele conclui afirmando que a eventual disparidade pode significar um viés tanto para cima quanto para baixo. Ignora, desta forma, o fato de que a inflação dos últimos seis meses foi crescente, embora abstratamente o inverso pudesse ter ocorrido, e que, portanto, haverá um viés para baixo do salário real médio, como computado pelo decreto do governo.
Na questão do cálculo do salário médio real, foi obrigado, no entanto, a conceder que houve efetivamente uma perda para diaristas, semanais e quinzenalistas. Mas, por outro lado, diz que pelas mesmas razões, aqueles que recebem no dia 10 seguinte ao mês trabalhado serão beneficiados. Do ponto de vista da massa de salários como um todo, nada se pode concluir sem as devidas ponderações, mas resta ainda a intocada questão distributiva de como fazer com que os ganhadores compensem os perdedores, evitando-se assim desequilíbrios, mesmo que localizados.
Arida prossegue afirmando que "o abono concedido cobre, com ampla margem, a diminuição causada por datas de recebimento anteriores ao final do mês, e beneficia ainda mais quem recebe no mês seguinte”.
E mais adiante afirma que o argumento de que o salário real médio do passado foi transformado no novo salário de pico é falacioso, pois qualquer inflação em cruzados afetaria um salário anterior acrescido do abono de 8%.
São estas duas últimas afirmações que passarei a discutir. A primeira não é inteiramente correta, e a validade da segunda depende do que são, efetivamente, os 8% de abono. Segundo Walter Barelli, o abono de 8% tem sido apresentado como compensação para as distorções da exclusão dos índices inflacionários da segunda quinzena de fevereiro no IPCA daquele mês (6%), bem como para anular os efeitos do recente choque agrícola (2%). Assim, não poderá ser também usado para compensar as perdas de salários médios reais dos trabalhadores cujos pagamentos são feitos antes do dia 30.
Mesmo assim, ignorar-se-á esta impossibilidade física, pressupondo que o abono de 8% não tenha nenhuma função compensatória, seja para uma, ou para a outra, das distorções acima apontadas.
A tabela anexa mostra o comportamento dos salários reais médios dos próximos 12 meses sob algumas hipóteses alternativas. Igualando-se o salário real médio dos últimos seis meses, acrescido de 8% de abono, a 100, e isto é feito dando-se a devida consideração à periodicidade e à época dos pagamentos de salários, diferentemente do ocorrido no decreto-lei 1.284 - nota-se que no caso de inflação zero, os assalariados que recebem no dia 10 do mês seguinte são beneficiados e o abono real é de 11,8%. Para os que recebem no dia 30, o decreto é neutro. Mas para os quinzenalistas, semanalistas e diaristas (estes últimos não incluídos na tabela por apresentarem resultados muito próximos aos semanalistas), o abono real cai para cerca de 4,8% (quinzenalistas) e 2% (semanalistas). Mesmo assim, não houve qualquer perda real de salários.
O mesmo não pode ser dito caso a inflação residual seja de 1% ao mês. Todas as categorias terão abonos menores do que os 8% anunciados, e no caso dos quinzenalistas e semanalistas existirão perdas reais de salários médios de 1,7% e 4,3%, respectivamente.
E na hipótese pessimista de inflação residual de 1,5% ao mês (que não será suficientemente alta para deflagrar o gatilho da escala móvel de salários), todos terão perdas reais, com exceção dos que recebem seus salários no dia 10 do mês seguinte ao trabalhado. As perdas reais serão de 1,8% para os que recebem no dia 30 e de, respectivamente, 4,7% e 7,3% para os quinzenalistas e mensalistas. Trata-se de situação em que não somente o abono de 8% é totalmente corroído, como também de perdas no salário médio desfrutado nos seis meses imediatamente anteriores ao plano de estabilização.
Arida afirma que na ausência de reforma monetária não existiriam garantias para a manutenção do salário real médio; mostrou-se que tampouco existem com a implantação da reforma, ao menos para algumas parcelas dos assalariados.
Para efeito de comparações, projetou-se o salário real médio na ausência do plano de choque sob três hipóteses alternativas. Inflação mensal de 12,75% ao mês - é a média dos últimos 6 meses - que pressupõe a ausência de pressões inflacionárias estruturais e a manutenção do patamar anterior. Tal hipótese, otimista, é comparável com a inflação zero do plano "cruzado". Os casos de inflação de 14% e 14,5% ao mês seriam as hipóteses intermediária e pessimista, compatíveis com taxas de inflação residual de 1% e 1,5% em cruzados.
Viu-se que no caso da inflação ser efetivamente zero, o salário médio real será incrementado entre os limites de 2% e 11,8%. Já na ausência do plano de choque, uma inflação de 12,75% ao mês implicaria em perdas de 2,0% aos assalariados.
Nas duas outras hipóteses, o plano cruzado também garante maiores salários médios reais do que sem ele, com exceção do caso dos trabalhadores semanais quando, na hipótese pessimista, as duas situações são igualmente ruins, e acarretam perdas reais de 7,2% nos salários médios.
O plano de choque não é neutro, e poderá implicar em perdas reais da parte dos assalariados. Deve-se admitir, contudo, que as perdas serão menores do que sem ele. Não obstante, pode-se continuar afirmando, como fiz em artigo de 6 de março, nesta mesma Folha, que o salário médio é o novo salário de pico, e que mesmo com o abono de 8%, perdas salariais reais poderão ocorrer se a inflação não for zero.