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Marcos Cintra

Os mitos que rondam os IVAs

Com a promulgação da Emenda Constitucional 132 de 2023, conclui-se mais um capítulo da saga da reforma tributária. Foram mais de 30 anos de debates que nem sempre se fizeram claros aos contribuintes. Agora, introduz-se um novo modelo de tributação sobre a produção, um IVA, imposto sobre valor agregado, conhecido também como a tributação da circulação de bens e serviços ou do consumo. No Brasil, foi batizada de IBS/CBS.


A aprovação da EC 132/2023 está sendo saudada com euforia, seguindo a narrativa triunfalista da PEC 45/110 desde sua apresentação em 2019. De fato, foi uma vitória para o governo e para seus defensores. A exacerbada expectativa positiva sobre a EC 132/2023, visão assimilada e repetida por quase todos os meios de comunicação e pelas entidades oficiais de vários setores empresariais, principalmente da indústria e do setor financeiro, desdobra-se em elogios ao fato tido como histórico, comparável ao Plano Real. A argumentação aponta na direção de o Brasil ter atingido nível de eficiência tributária equivalente à de países tidos como modelos a serem seguidos. Espera-se um modelo capaz de atingir vários desideratos como simplificação, redução da litigiosidade e da evasão, não cumulatividade plena, creditamento amplo, total exoneração do comércio transfronteiriço, redução de custos de conformidade, adequada progressividade, estímulo ao crescimento econômico e, ademais, com uma alíquota neutra modesta, estimada em 27,5% no máximo.


Esse conjunto de qualidades alegadamente inerentes à EC 132/2023 só pode ser provado, ou rejeitado, ex post. São atributos dependentes do futuro ambiente institucional, político e social do país, além evidentemente do processo administrativo fiscal que englobará a implementação do novo modelo. Qualquer previsão é hipotética, impossível de ser comprovada ex ante. Alguns estudos, todos especulativos, reforçam, ou questionam, essa narrativa, como previsões de aumentos de mais de 20 pontos percentuais na taxa de crescimento do PIB nas próximas décadas por força exclusiva dessa reforma. Mas a comprovação de fatos como simplicidade, eficiência e maior crescimento terão de aguardar o veredito dos fatos, e isso levará anos, senão décadas a serem confirmados, ou rejeitados.


Outros componentes desse discurso podem ser comprovados, ou não, ex ante, com recurso à lógica e à teoria econômica, sem necessidade de aguardar o desdobramento dos fatos. Nesta categoria eu destaco três afirmações que têm ocupado espaço na narrativa midiática dos apoiadores da PEC 45: 1. que o modelo a ser implantado terminará com a "guerra fiscal"; 2. que as alíquotas do novo IBS/CBS serão neutras, e, portanto, irrelevantes nas decisões de alocação de fatores e na eficiência dos mercados intermediários; e que seus efeitos serão sentidos apenas no mercado consumidor final, quando então poderão ter efeitos retroativos secundários nos mercados intermediários; 3. que haverá não cumulatividade plena.


Vejamos os méritos dessas três afirmações, chamando a atenção para o fato de que quero me referir apenas à validade formal dessas afirmações, e não à eventual magnitude de seus impactos concretos, que não foram estimados.


Fim da guerra fiscal


A "guerra fiscal" é um fenômeno que ocorre quando diferentes entidades governamentais competem entre si para atrair investimentos, geralmente pela concessão de incentivos fiscais. Esse fenômeno é comum em países federativos, como o Brasil, onde estados e municípios têm autonomia para estabelecer suas próprias políticas fiscais. Ela pode ter consequências significativas. Por um lado, pode atrair investimentos e promover o desenvolvimento econômico em áreas menos desenvolvidas. No entanto, também pode levar a uma "corrida para o fundo", onde os governos continuamente reduzem os impostos para atrair investimentos, o que pode resultar em perdas significativas de receita.


Demonstro abaixo que a EC 132/2023 não eliminará a "guerra fiscal"; apenas mudará suas feições. Se no regime de tributação prioritariamente na origem a "guerra fiscal" se materializa na arrecadação gerada pela saída de bens e serviços, no regime de destino ela ocorrerá na arrecadação gerada na entrada de bens e serviços, sejam intermediários ou de consumo final. No limite, o IBS/CBS poderá ter até 5.569 alíquotas modais diferentes, uma para cada município. Portanto, um mesmo produto, digamos um calçado, um produto químico ou um serviço de TI poderá ter centenas de preços diferentes, dependendo de onde estiver o produtor do bem ou do serviço, seja ele insumo ou produto, e onde se localizar o destinatário da operação.


Nessas condições, não se pode excluir a possibilidade de competição fiscal que se utilize de armas semelhantes à famigerada "guerra fiscal", porém com sinal trocado.


A alíquota incidente sobre uma operação será a soma da CBS, do IBS do estado e do IBS do município. Assim, se a CBS tiver uma alíquota de 9%, o estado X de 15% e o município Y de 3,5%, qualquer empresa localizada no município Y terá um custo tributário de seus insumos de 27,5%, que é a alíquota de seu município, e que formará o custo base para qualquer operação subsequente de saída, interna ou interestadual. Quanto mais baixa essa alíquota global, ceteris paribus, maior será sua competitividade.


Suponhamos agora que uma empresa concorrente ingresse nesse mesmo mercado. Onde ela irá se localizar? Se ambas concorrem no mesmo mercado nacional, ela irá escolher o município cuja soma de alíquotas da CBS e IBS seja mais baixa que a do município Y, corrigidas pelos custos logísticos, e isso lhe dará uma vantagem competitiva e potencializará sua expectativa de lucros. Vê-se, portanto, que a tributação será determinante na escolha de localização, diferentemente do que se espera da EC 132/2023. Em outras palavras, a carga tributária de cada município em diferentes localidades influenciará a escolha de localização e a combinação no uso de fatores de produção.


Imagine agora que uma grande montadora chinesa chegue ao Brasil e esteja escolhendo seu local de produção. Suponhamos que a escolha recaia sobre o município Z. Mas, um município vizinho W, com baixa população consumidora, deseja atrair a montadora. Poderá o município W reduzir sua alíquota do IBS para atrair a montadora? Por que não? Vejam que a concorrência fiscal poderá existir, com outras características, e certo, mas a concorrência fiscal mediante redução de alíquotas não deixará de existir. Não na saída de bens e serviços como hoje, mas nas operações de entrada.


Em entrevista recente, uma importante autoridade econômica afirmou textualmente que "escolher um método produtivo menos eficiente ou escolher a localização geográfica (da produção) em função da tributação não vai existir no novo modelo". Porém, como vimos anteriormente e como nos mostrou Orlando Dalcin no artigo "Cadeias de suprimento e a nova tributação" no jornal Valor Econômico de 22 de dezembro último, as variáveis de logística, transporte, supply chains e planejamento tributário têm muito a dizer sobre a escolha de localização, hoje e no futuro.


A neutralidade do IBS/CBS nas operações B2B


É ponto pacífico que a EC 132 implicará um forte incremento na carga tributária de alguns setores, particularmente nos setores mais intensivos em mão de obra, como os serviços. A segunda narrativa, que eu denomino de mito, tem a ver com a alíquota do imposto e seus efeitos pretensamente nulos quando incidirem no meio da cadeia de produção, afirmação que tem surgido com inusitada regularidade como um contra-argumento aos que demandam urgente correção desse deslocamento de carga de imposto em desfavor dos serviços.


Trata-se de uma narrativa construída sobre um caso especialíssimo de demanda totalmente inelástica. De tanto ser afirmada e reafirmada por muitos tributaristas adeptos da tese da superioridade incondicional dos IVAs relativamente a qualquer outro tributo sobre a produção, a tese virou "verdade", ou seja, a de que o aumento da carga tributária sobre os serviços não deve preocupar os prestadores se eles atuarem no meio da cadeia produtiva, pois os aumentos de tributos seriam neutralizados em créditos retornados aos adquirentes. E concluem: apenas os consumidores sentiriam a tributação do IVA, já que os prestadores de serviços passariam praticamente ilesos frente à escalada tributária.


O que o mito faz acreditar é que o creditamento do tributo previamente recolhido na compra de um insumo faz com que o impacto do aumento do imposto desapareça como por milagre, e que, portanto, não afeta a relação comercial do prestador de serviços com seus parceiros.


O creditamento de impostos pagos nas etapas anteriores de uma cadeia - como, por exemplo, a compra de um insumo - não elimina a incidência econômica do imposto na formação de preços do produto acabado, ainda que contabilmente o IVA possa não passar pelas contas de resultado, ou seja, possa não ser considerado custo. O crédito apenas evita que, na saída do produto, o imposto incida novamente sobre o imposto recolhido. Mas não há qualquer redução ou devolução do imposto pago. Em outras palavras, uma elevação de impostos, mesmo no meio da cadeia de produção, aumentará sim o preço dos insumos e dos produtos vendidos ou reduzirá a margem do negócio na exata medida do tributo, mesmo com creditamento. Quanto desse repasse o mercado sancionará pode ser tudo, nada ou em parte, sendo esta última situação amplamente dominante na economia real.


Importante destacar que o conceito de incidência econômica não coincide com o de recolhimento administrativo-contábil do tributo, exceto em condições especialíssimas. A incidência final do imposto será partilhada entre comprador e vendedor, e dependerá das elasticidades de demanda no mercado intermediário, bem como das relações de concorrência entre os participantes desse mercado, como sabemos dos princípios elementares do funcionamento da oferta e da demanda. Cai por terra, portanto, o mito de que no meio da cadeia um IVA não afeta a relação de mercado entre comprador e vendedor.


Vejamos um exemplo concreto. Vamos analisar primeiramente uma situação sem imposto.


Suponhamos que a empresa 1 compre mercadorias intermediárias por 100 e adicione um valor agregado de 50, vendendo o produto por 150 para a empresa 2. O fluxo de caixa da empresa 1 seria como na tabela 1.


A empresa 1 obtém uma margem de valor agregado de 50, que pode ser destinada a salários e lucros, alcançando assim um ponto de equilíbrio.


Sigamos para a próxima situação, em que um IVA de 10% é aplicado. O fluxo econômico de caixa da empresa 1 depois da aplicação do IVA ficaria como na tabela 2.


O crédito fiscal conseguiu evitar a cobrança cumulativa de impostos. Não havendo crédito, o custo tributário seria acrescido do componente cumulativo equivalente a 10% sobre o crédito de 10. Com aproveitamento dos créditos, o preço total passou de 150, sem imposto, para 165 já com o IVA incluído. O imposto recolhido foi integralmente repassado ao próximo elo da cadeia. Se essa mesma situação ocorrer em todos os elos da cadeia produtiva, o consumidor final irá arcar com o imposto integral, e de fato os elos produtores da cadeia seriam capazes de manter suas margens sem serem afetados pela tributação.


Agora, vejamos o que acontece na prática. A empresa 1 tem concorrentes e a demanda da empresa 2 não é totalmente insensível a alterações de preço. Considerando a possibilidade de um aumento de custos, a empresa 2 pode exigir um desconto. Nesse contexto, a empresa 1 poderia reduzir o preço para 140, evitando assim a perda de fatia de mercado para um concorrente.


Vejamos como fica o fluxo de caixa, considerando o IVA e o desconto (ver tabela 3).


Esse comportamento concorrencial costuma ocorrer em situações reais de mercado. Note que nesse último exemplo, o imposto arrecadado pelo governo foi de 14, sendo que a empresa 1 acabou suportando uma carga tributária de 10 e viu sua margem cair de 50 para 40. Já a empresa 2 conseguiu reduzir seu custo total de 165 para 154.


O que precisamos entender é que quem definirá a incidência do IVA serão as elasticidades-preço de demanda nos mercados intermediários, e não o crédito fiscal que apenas evita a cumulatividade. Embora muitas vezes tenhamos a percepção de que o IVA é um imposto neutro nas operações B2B, ou seja, que não tem efeito sobre a transação, este não é necessariamente o caso. Na prática, isso pode significar que as empresas acabem por absorver uma parte do IVA, impactando assim os preços, independentemente de receberem crédito fiscal. Essa perda de neutralidade do IVA nas operações B2B pode contribuir para distorções e ineficiências no mercado.





A não cumulatividade plena


A pretensa neutralidade do IVA é um preciosismo formal, que ainda tem mais um desdobramento que passa em geral despercebido. Trata-se do que denomino de cumulatividade implícita dos IVAs, que contraria o terceiro ponto de atenção mencionado antes.


O processo de produção ocorre ao longo do tempo. Daí a existência de cadências de produção onde insumos são adquiridos e aos quais se agregam valores que são repassados ao próximo elo da cadeia. Esse processo se repete dentro de cadeias simples ou múltiplas, mas sempre haverá um período de produção em qualquer elo que é o tempo necessário para transformar os insumos em produto acabado daquele elo, a ser repassado aos demais elos adiante na cadeia até que o produto formado com sucessivos acréscimos de insumos e de agregação de valor chegue ao consumidor final. Em cada elo da cadeia existe um período de produção que é o tempo transcorrido entre a aquisição dos insumos e a venda do produto daquele elo. A consequência desse período de produção é que na entrada dos insumos haverá o pagamento do IVA de entrada junto com o preço da compra; contudo, a efetiva compensação do crédito do IVA de entrada apenas se materializará quando do recolhimento do IVA de saída do produto "final", abatido do crédito do IVA de entrada (ver tabela 4).



No exemplo da tabela 4, uma empresa realiza cinco operações de compra e venda defasadas no tempo, três delas com aquisição de insumos de 100 e preço de saída equivalente ao dobro do valor dos insumos, e duas com valor de 200. O capital de giro necessário é de 10 nas primeiras três operações, e de 20 para as duas seguintes, considerando que as operações dobraram de valor.


Note-se que, dependendo da relação entre os tempos de pagamento do IVA de entrada ao fornecedor no elo anterior da cadeia, os tempos de recolhimento do tributo do IVA de saída e do período de produção, haverá um custo financeiro que será acrescido ao preço do produto. É uma obrigação legal geradora de custos "tributários" que não são passíveis de creditamento, e que consequentemente tornam-se parte do valor da transação que sofrerá tributação em cascata, repetindo-se em cada elo da cadeia até o consumidor final. Em realidade, se o IVA é considerado imposto sobre consumo, trata-se de um capital de giro tributário oneroso advindo do financiamento das antecipações de parcelas do IVA sendo recolhidas ao Tesouro pelos componentes da cadeia de produção, como se fosse um adiantamento do valor total do IVA que será suportado pelo consumidor final.


Comparando-se com igual valor do tributo cobrado pelo sistema do sales tax, ou imposto de venda a varejo, IVV, incidente apenas no consumidor final, este sim um verdadeiro tributo do consumo, seria possível dizer que a cumulatividade implícita do IVA é o custo do financiamento ao Tesouro das antecipações em cadeia durante o processo de produção. Nesse aspecto, a incidência total dos IVAs equivale ao valor do sales tax acrescido do custo do financiamento das antecipações.


Vale notar, contudo, que haverá uma série de operações sobrepostas ao longo do tempo dentro de uma mesma empresa. Dessa forma, os créditos poderão ser compensados com débitos gerados pelas vendas sem que seja necessário que o tempo de produção transcorra sequencialmente para o seu aproveitamento. Contudo, em geral, as operações entram em fase e se cria um steady state no qual a cumulatividade implícita não deixará de existir uma vez que, para cada crédito aproveitado antecipadamente ao seu tempo de produção, houve um adiantamento oneroso anterior.


Tomando-se o exemplo numérico ao lado, e supondo-se que haja exigência legal de recolhimento do IVA no ato do recebimento do valor da transação (que inclui o imposto) e supondo-se que o período de produção da empresa 1 seja de 30 dias fora o mês, a cumulatividade implícita do IVA equivalerá ao custo de oportunidade do capital pelo período de 30 dias fora o mês sobre 10, que foi o IVA pago na compra do insumo. Conclui-se que, stricto sensu, a não cumulatividade plena é uma falácia.


Em resumo, mesmo diante de mecanismos de compensação como o crédito fiscal, os IVAs nas operações B2B não são neutros, e podem causar efeitos significativos na dinâmica do mercado. Eles distorcem os preços relativos da economia e influenciam as escolhas de combinações de insumos e de localização industrial. A neutralidade apenas ocorreria em condições de contorno extremamente rígidas, como universalidade de incidência e alíquota única, improváveis de serem encontradas na prática.


 

Marcos Cintra

Professor titular da Fundação Getulio Vargas (FGV). Foi deputado federal e secretário especial da Receita Federal.



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